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a Roraima da Guiana

dizer que Roraima é o lugar mais distante do país (e nisso compete com o Acre) naturalmente tem algo de uma estreiteza bem feia. os pampas, claro, poderiam ganhar esse mesmo posto, embora talvez muitos roraimenses natos ou acolhidos venham a colaborar com o preconceito mencionado. mas ter a capital em média mais cara para se chegar de avião e contar com a Venezuela como praia de final de semana da mesma forma não ajudam a ver Roraima integrada ao país.

mais assombroso é, porém, ser vizinha da Guiana (um dos três países sul-americanos que são africanos, caribenhos, com pezinho na Índia e na China e que, por isso, mais por crise de identidade do que por distância ou isolamento, não existem). bem pior: de carro e em estrada boa, bonita e quase deserta, de Boa Vista à Guiana não se gasta mais que 1h30. no trajeto, araras frequentes, savana, blocos de montanhas quase fake irrompendo de onde não se espera, reservas indígenas (sem índios à vista) e Bonfim, típica cidade roraimense que parece ter uma rua para cada habitante (sei lá, devem ser umas 20 ruas…).

a placa indicando a Guiana logo à frente soa a piada. mas o que se segue é de fato uma espécie de parque temático sem resolução, sem luxo, sem clímax e surrealista ao gosto de filme b. Roraima termina sem cerimônias num matagal às margens do rio Tucatu e o que vem logo após a ponte nada tem de exótico ou estrangeiro. mais mato, mais lama. mas a Guiana vai se insinuando aos poucos. uma outra placa comercial precária em inglês (ou será o cansaço da pequena viagem no calor da savana…?). Lethem, a cidade guianense lá em frente, vai se mostrando em cores incomuns. mas a peça vai ficando séria quando a sinalização avisa que o carro deverá passar por um trecho de adaptação, digamos, para andar em mão inglesa. a marca colonial acompanhará então toda a visita, muito embora as ruas de terra de Lethem (todas são assim) sugiram mais um lugar sem lei e sem mão do que uma regra estranha.


o estranhamento cresce homeopático. a aparência de interiorzão barra pesada brasileiro tem placas de rua tais como “windimill road”. a onipresença de pessoas negras perturba o olhar multiétnico do visitante. as cores vibrantes das construções e sua própria arquitetura transparecem uma percepção de “lugar rico” que nunca combina com o chão em que foi edificado – é algo como se algumas casas de Amsterdam tivessem sido carregadas por um furacão e houvessem caído numa aldeia indígena. o que minimamente ameniza essa loucura (mas reforça por outro lado) é se tocar de que toda casa é um estabelecimento comercial (muitos com nomes, placas e anúncios em português – aha! era uma piada então?). ninguém mora então em Lethem?

o mundo interior dessas lojas, sobretudo as maiores, choca menos. são grandes feirões de contrabando e falsificados. é tanto lacoste e nike pra todo lado que ambas as marcas viraram com o tempo motivo de constrangimento em Boa Vista: se você aparece com uma polo com um jacarezinho (ainda que autêntica e tendo valido três dígitos de real), logo lhe olharão na capital com uma cara de “ahnnn…muamba, né?”. auxiliando quem procura bons negócios nas pilhas de produtos chineses, lá estão mocinhas guianenses ou chinesas ou ainda – o estranhamento não dá muita folga – chinesas negras. todas falando muito bom português, ao menos dentro dos temas que interessam ao momento: qualidade, preço, troco, etc. há mais língua inglesa nas placas de Lethem que na boca da população. mas nas raras ocasiões em que é possível flagrar dois guianenses dialogando, haverá 80% de chance de ouvir um bom chinês e 20% de deliciar-se com aquelas versões coloridas, simplificadas e musicais que a América dá aos idiomas europeus. mas é bom aproveitar, pois, além de raros, esses diálogos são baixos e vêm de uma população entre o fechado e o antipático.

China, compras, língua portuguesa e uma descarada entrada e saída de brasileiros sem fiscalização nenhuma. Tudo isso deixa Lethem com cara de quintal de casa, ainda mais para o pessoal de Boa Vista que vai lá todo mês renovar o guarda-roupa a custo de quase nada. O assombro se foi. a Guiana não morde e talvez nem exista mesmo. mas é então que você se depara com um casebre que vende passagens de van para Georgetown, a capital, já lá de frente pro Caribe real. uma viagem de muitas horas ou mesmo dias por estrada de terra no meio da Amazônia guianense. mas é então que você cruza com um caminhão com carroceria cheia de trabalhadores sumindo na estrada para dentro da mata. é aí que você lembra que mais adiante há de fato um país, mestiço ainda do mais improvável, mas mais Guiana. e que nunca é visitado e do qual nada se sabe. afinal Lethem, na altura de sua precariedade e de seus pouco mais de 3000 habitantes, é também uma capital, mas capital do Upper Essequibo-Upper Takutu, um departamento que pra humilde Guiana tem tanto peso quanto Roraima para o Brasil. e então não dá mais para penetrar na mata, pois já é hora voltar pro conforto da realidade na metrópole Boa Vista.

Para Aparecida

fizemos o seguinte:

1) Alugamos um carro; a locadora fica na Rua da Consolação, perto da São Luís, quase esquina com a Nestor Pestana. Era um sábado de tempo bom, não muito calor, um pouco nublado. Esperando todos os viajantes fiquei andando pela Martins Fontes, depois vendo o movimento da rua aumentar discretamente.

2) De lá saímos umas 11h. O caminho até a estrada é meio chatinho, por mais que simples. Tem que passar por perto da Zona Cerealista, Mercadão, Luz, região da 25 de março, que sábado de manhã está no ápice da agitação.

3) Com a Marginal Tietê em obras, o sufoco dura alguns minutos. Chegar na estrada é um alívio: Ayrton Senna e Carvalho Pinto na ida; Dutra na volta, só para variar um pouco.

4) O comércio é fartíssimo. Sem dificuldade achamos um restaurante razoável, não muito longe da Basílica Velha – um mimo, depois da restauração que está em curso. Deixamos o carro na pracinha da basílica.

5) A passarela que leva à nova basílica é um momento à parte. Uns rapazes pagando promessa caminham de joelhos. Um deles somente acompanhado da namorada, que lhe dá as mãos.

6) Na basílica a todo momento há cânticos ou arremedos de missa.

7) A sala das promessas é o ponto alto do dia. Ex-votos, fotos coladas no teto, objetos de profissão organizado por temas em vitrines, crucifixos, imagens da nossa senhora.

8) O mirante não é extraordinário, mas vale os três reais de entrada, que também dão direito a visitar o museu. O prédio do mirante é o único lugar onde pude encontrar cartões postais. O comércio de lojas e barracas oferece gravação com nome em chaveiros e em todo objeto gravável. Pessoas se reúnem em torno de “folclore”.

9) Sair para pegar a estrada é questão de ficar atento às placas.

10) Ir a Aparecida fora do mês de outubro não é um inferno como eu esperava.

Sensação de missão cumprida.