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nada abaixo teve mosquitos

os críticos do marketing e da publicidade – baudrillard que o corrobore – sempre argumentaram que a propaganda não engana ninguém. o público é que entra num acordo e se faz de enganado (encantado) para ser feliz. sem ser, sabendo que não, mas também fingindo que o é. eu engano o comercial que me engana e saímos todos satisfeitos. só que alguém com um pouco mais de dinheiro que o outro.

se tudo isso é verdade, é preciso, ao menos, que os disfarces sejam feitos com sutilezas. eu não transparecerei cinismo. caso contrário, como o anúncio vai pensar que eu o amo? como a corrente de amor e cuidado perdurará? não: em nosso fingimento em grupo somos sempre sinceros.

até que houve manaus.

  1. “não se vem a manaus pela primeira vez sem fazer o passeio do encontro das águas”, disse-me o cicerone bondoso. não é que eu não pudesse passar sem isso… e eu embarquei para conferir a bifásica visão das águas cor de coca cola do rio negro em contato com o barroso rio amazonas, que, por sua vez, vai se chamar solimões, embora, no final das contas, no passeio da AMAZON EXPLORES (que cola em nosso peito um adesivo de comemoração dos seus 45 anos – dezena suspeita em ano de eleição), todos se refiram a amazonas mesmo.
  2. “o mistério das águas que não se misturam”, dizem os folhetos. “é por causa da diferença x de temperatura dos dois rios, da diferença x’ de densidade, dos sedimentos dissolvidos no rio negro”, garante o guia, simpático, a despeito do seu aspecto de vigilante de loja de ferragens.
  3. acrescentado se referir à quantidade maior de máquinas fotográficas em atuação do que passageiros. mais significativo escutar o estímulo do guia às fotos, pois “na volta talvez não passemos pelo mesmo caminho”.
  4. “olha na água!”, vocifera a senhora feita para blusa de zebra. “que foi?”. “acho que é uma baleia”. não estamos no passeio de interação com os botos, que custa (julho de 2010) 245 reais, contra 100 deste nosso.
  5. manaus vai sumindo. a periferia distante surge. casinhas flutuantes. postos de gasolina flutuantes. Igreja DEUS É AMOR flutuante. ribeirinhos flutuantes dão tchau. francesas a bordo devolvem.
  6. o leme da barca sofre. vira para todos os lados que permitam boas fotos das águas contrastantes do negro e do solimões. uma hora de viagem aqui, mas penso que ganharíamos mais uns 10 minutos se tantas vezes o leme não estivesse na mão de passageiros fotografados à moda comandante (por estímulo do próprio ao microfone).
  7. passageiro: “queria ver uma preguiça. ela tem cara humana”.
  8. no parque ecológico de janauary, na vizinha iranduba, há o autêntico impacto de um lago de vitórias-régias (sim, nem tudo é falso e muito menos inválido o passeio – que fique bem claro). já aguardando no píer, um casal de indiozinhos a caráter, não mais que 8 anos cada um, prontos para o uso em fotos. e elas não cessam, na proporção de 3 para cada 1,7 daquelas que focaram as plantas aquáticas assombrosas. nem cessa o sorriso atordoado dos modelos. nem cessa a boa senhora na sua busca por moedinhas que não acha.
  9. parada numa palafita para ver filhotes gigantescos de pirarucu aprisionados. indiozinho adianta-se com bacia de pequenos peixes vivos. espetados em anzóis, os infelizes são entregues em varas para senhores já ocupados com latinhas de cerveja. a diversão é simples: quando os pirarucus darão o tiro de misericórdia? entediados e talvez dignos, na altura de suas escamas brancas, pretas e rosa, eles não parecem famintos. isso irrita mocinha delicada, que sacode o peixinho espetado, ordenando que ele não morra até a brincadeira acabar.
  10. tudo isso é filmado pela AMAZON EXPLORES sem pudor.

epílogo – nos 60 minutos de retorno, 80% por cento dos passageiros não vêem mais igrejas flutuantes, nem ilhas, nem urubus, nem botos, nem a ponte gigante que ligará manaus e a iranduba, nem muito menos o já manjado e esclarecido encontro das águas. estão sentados diante da TV, vendo o vídeo semi-editado de suas próprias peripécias, que poderão adquirir até o final do dia por apenas 40 reais.